Alguns escritores:
Raul Pompéia:
Capítulo I
- Ah, ah! Ah, ah!... É o que você pensa. Ninguém se arroja a uma empresa destas, sem saber o terreno em que vai pisar. Eu sou um jogador que sempre conhece as cartas de que dispõe e as do seu adversário... É o que faltava... Um homem habituado às dificuldades de todas as empresas espinhosas ...
- É exato, o senhor tem dado provas do que é capaz... aquele escandalozinho da rua... que se abafou tão bem, aquela caçada da Milica... Sem a sua habilidade as coisas não iriam tão macias, mas...
- Mas... que?! Pois você quer pôr em dúvida a minha confiança?! Garanto-lhe que o negócio não trará compromisso a ninguém... Você já tem cinco anos de serviço, tem garantias... Cá para mim, provoco os céus e a terra a virem estremecer a minha influência neste paraíso de bambus...
- É exato, ele precisa do senhor... quem ficará mal hei de ser eu. Se vou para a rua sem mais nem menos...
- Se é este o seu receio, eu o tranqüilizo... Assino, se você quiser, um papel de dívida, comprometendo-me a dar a mesma recompensa, seja qual for o resultado no negócio... Ora, imagine que nos venha daí um bolo de 600 contos... Dar-lhe-ia boa porção. Todos lucraremos maravilhosamente... Se não conseguirmos nada, ainda assim você estará perfeitamente, porque, se a coisa for impossível, não ficarão vestígios da tentativa, e, se formos surpreendidos... Não! Não seremos! O êxito é certo... As jóias do duque estão depositadas numa sala grande do lance esquerdo do palácio, num armário envidraçado. Se você continua teimando em não querer...
- Teimar não! eu estou apresentando dúvidas, porque ninguém deve...
- Não quero saber de doutrinas. Aceita ou não aceita? Responda já, sem muitas histórias... Está caindo a noite... Ou fazemos hoje ou nunca! Amanhã podem ter sido retiradas as jóias. Vamos deixar fugir a mais risonha fortuna... É impossível... Se você não aceita meu convite para acompanhar-me, eu irei só...
- Realmente não há muito tempo para reflexões e o negócio convida...
- Então?... O que decide?...
- Eu... Eu...
- Vamos!...
- Aceito,aceito.
- Ora graças! É preciso ser-se bastante idiota para hesitar tanto num caso destes. Ter nas mãos uma riqueza e temer perigos... Ora, Inácio, você não merece a sorte que lhe está reservada...
- Ainda veremos, sr. Pavia...
Esta conversa se travara no interior da vasta quinta do duque de Bragantina.
Um dos interlocutores era um indivíduo todo de branco, baixote, gordo, peludo na cara como um cachorro d'água, de fisionomia um tanto indistinta naquela hora, que ia adiantando o crepúsculo e os objetos começavam a esfuminhar-se na uniformidade da noite.
A pessoa com quem ele falava era um sujeito em mangas de camisa, fino, comprido, teso como um soldado, de cara rapada, olhar habitualmente baixo e movimentos receosos, denunciando que todo aquele retesamento era teatral; aquela espinha, tão enrijada para trás, caía muitas vezes para a frente em profundas continências, e aqueles ombros, que pareciam feitos para dragonas, apenas carregavam librés.
Este indivíduo era um criado, evidentemente; o outro, saberemos em breve quem era.
Os dois conversavam sobre um negócio importantíssimo. Tratava-se de adquirir da noite para o dia uma enorme fortuna. Um símile da sorte grande de jogatina legal.
Achavam-se ao portão de uma espécie de jardim sem cultivo, no fundo do qual elevava-se uma boa casa, através de cujas venezianas se distinguia a claridade das luzes que se acendiam lá dentro por causa da hora.
- Posso, pois, contar com seu auxílio? - perguntou o homem de branco ao criado.
- Sim, senhor. Desde que o senhor nada teme, eu também nada quero nada temer...
- Muito bem! Isto é o que se exige. Tenha confiança em mim e ajude-me que teremos sucesso...
- Mas diga-me primeiro o que devo fazer...
- Precisamos conversar...
- Preciso de ordens...
- Mas está serenando aqui... entremos para casa...
Pavia e Inácio atravessaram o jardim na direção da casa. Subiram os quatorze degraus de uma escada dupla, que levava à porta da entrada, e desapareceram no vão escuro que a porta fazia.
A noite caíra.
A quinta do duque passara insensivelmente das vacilações do crepúsculo para as trevas decididas das sete horas de um dia curto.
As moitas de bambus condensavam-se em amontoados impenetráveis de escuridão; os gramados do parque alargavam-se, confundindo-se com as alamedas de areia numa vasta toalha de crepe; para longe, recortavam-se as montanhas negras. Dir-se-ia que a natureza acabava de cobrir-se de lutuosos merinós, se não fosse o cetim azulado do firmamento, e se não chovesse o riso das estrelas.
Entretanto, reinava movimento no meio da noite. Os numerosos habitantes da quinta do duque, lacaios e protegidos, recolhiam-se naquela ocasião às suas habitações agrupadas em aldeia, nos fundos do palácio. Consumiam a última atividade do diário, preparando-se para o repouso confortante da noite. Na massa de habitações acumuladas ao norte do parque, que fundiam-se com a noite, começavam a aparecer pontos luminosos. Era a candeia de um sótão, o bico de gás de uma sala de jantar ou a vela de um quartinho.
Quando acabaram de acender-se as luzes também o movimento cessou. Principiaram-se os serões.
Levemos o leitor a um deles.
Uma rua, ou melhor, um estreitíssimo beco, esmagado entre duas paredes crivadas de janelas iluminadas ou não, é o caminho que conduz ao coração desse povoado da quinta.
No extremo dessa viela úmida e escura está uma porta aberta. Entremos...
É uma sala miserável, pobremente mobiliada. Das paredes caem flâmulas de papel descolado e no meio da casa gemem míseros trastes, sobrecarregados de ninharias. Pelas mesas há vasos de fantasia arabescados de rachas e esfoladuras sobre uns tapetes de lã felpudos e muito anchos; pelas cadeiras, retalhos de pano e objetos de costura.
A um canto, conversam baixinho um velho e uma velha. Estão sentados em cadeiras, ao lado de uma pequena mesa. Sobre a mesa há uma vela que bate-lhes no rosto e clareia a toda a luz as rugas das duas fisionomias.
Trocam vivamente palavras.
O velho, com dedo médio unido ao polegar, como apertando uma pitada, faz gestos de quem sabe o que diz, e a velha encara-o através de uns grandes óculos de aros pretos, aprovando com a cabeça,e fala de vez em quando, agitando a agulha que tem na destra e a costura que sustenta na mão esquerda.
Em outro lado da sala vê-se, toda encurvada sobre si uma mocinha. Acha-se sobre um banco com os joelhos cruzados, repuxando-lhe muito o vestido que comprime-lhe as formas. Dedilha febrilmente um cabo de crochet de osso branco. De tempos a tempos levanta o rosto com os olhos semicerrados e sacode para trás a vasta cabeleira negra e esparsa, que quer escorregar-lhe para o crochet.
É uma formosa criaturinha, feições de criança, ar distraído, um tanto carnuda sob uma epiderme sem irritações. Parece não ter quatorze anos ainda e podia usar vestido curto.
Eis mais ou menos o que diziam os velhos:
- Sim, sim, - falava o marido -, é preciso garantirmos o futuro daquela menina. Se não aceitássemos os oferecimentos do Pavia cometeríamos um crime.
- Um verdadeiro crime - afirmou a velha.
- Por um tolo escrúpulo não se há de perder um bom dinheiro...
- Tão bom dinheiro... - reforçou a velha, batendo com a cabeça.
- Demais, o lucro não será só para nossa afilhada, o nosso netinho terá o seu quinhão...
- Sim senhor... Sim senhor...
- Já vê que fiz bem em responder ao Pavia que sim...
- Muito bem. A nossa afilhada assim terá um futuro garantido. A proteção do sr. Duque não é qualquer coisa... Ah! quem me dera que eu ainda fosse fresquinha como antigamente..." (CONTINUA)
Machado de Assis:
AO LEITOR
QUE STENDHAL confessasse haver escrito um de seus livros para cem leitores, cousa é que admira e consterna. O que não admira, nem provavelmente consternará é se este outro livro não tiver os cem leitores de Stendhal, nem cinqüenta, nem vinte, e quando muito, dez. Dez? Talvez cinco. Trata-se, na verdade, de uma obra difusa, na qual eu, Brás Cubas, se adotei a forma livre de um Sterne, ou de um Xavier de Maistre, não sei se lhe meti algumas rabugens de pessimismo. Pode ser. Obra de finado. Escrevi-a com a pena da galhofa e a tinta da melancolia, e não é difícil antever o que poderá sair desse conúbio. Acresce que a gente grave achará no livro umas aparências de puro romance, ao passo que a gente frívola não achará nele o seu romance usual, ei-lo aí fica privado da estima dos graves e do amor dos frívolos, que são as duas colunas máximas da opinião.
Mas eu ainda espero angariar as simpatias da opinião, e o primeiro remédio é fugir a um prólogo explícito e longo. O melhor prólogo é o que contém menos cousas, ou o que as diz de um jeito obscuro e truncado. Conseguintemente, evito contar o processo extraordinário que empreguei na composição destas Memórias, trabalhadas cá no outro mundo. Seria curioso, mas nimiamente extenso, e aliás desnecessário ao entendimento da obra. A obra em si mesma é tudo: se te agradar, fino leitor, pago-me da tarefa; se te não agradar, pago-te com um piparote, e adeus.
Brás Cubas
CAPÍTULO PRIMEIRO /ÓBITO DO AUTOR
ALGUM TEMPO hesitei se devia abrir estas memórias pelo princípio ou pelo fim, isto é, se poria em primeiro lugar o meu nascimento ou a minha morte. Suposto o uso vulgar seja começar pelo nascimento, duas considerações me levaram a adotar diferente método: a primeira é que eu não sou propriamente um autor defunto mas um defunto autor, para quem a campa foi outro berço; a segunda é que o escrito ficaria assim mais galante e mais novo. Moisés, que também contou a sua morte, não a pôs no intróito, mas no cabo: diferença radical entre este livro e o Pentateuco.
Aluísio de Azevedo:
Era um dia abafadiço e aborrecido. A pobre cidade de São Luís do Maranhão parecia entorpecida pelo calor. Quase que se não podia sair à rua: as pedras escaldavam; as vidraças e os lampiões faiscavam ao sol como enormes diamantes, as paredes tinham reverberações de prata polida; as folhas das árvores nem se mexiam; as carroças d’água passavam ruidosamente a todo o instante, abalando os prédios; e os aguadeiros, em mangas de camisa e pernas arregaçadas, invadiam sem-cerimônia as casas para encher as banheiras e os potes. Em certos pontos não se encontrava viva alma na rua; tudo estava concentrado, adormecido; só os pretos faziam as compras para o jantar ou andavam no ganho.
A Praça da Alegria apresentava um ar fúnebre. De um casebre miserável, de porta e janela, ouviam-se gemer os armadores enferrujados de uma rede e uma voz tísica e aflautada, de mulher, cantar em falsete a “gentil Carolina era bela”; do outro lado da praça, uma preta velha, vergada por imenso tabuleiro de madeira, sujo, seboso, cheio de sangue e coberto por uma nuvem de moscas, apregoava em tom muito arrastado e melancólico: “Fígado, rins e coração!”. Era uma vendedeira de fatos de boi. As crianças nuas, com as perninhas tortas pelo costume de cavalgar as ilhargas maternas, as cabeças avermelhadas pelo sol, a pele crestada os ventrezinhos amarelentos e crescidos, corriam e guinchavam, empinando papagaios de papel. Um ou outro branco, levado pela necessidade de sair, atravessava a rua, suado, vermelho, afogueado, à sombra de um enorme chapéu-de-sol. Os cães, estendidos pelas calçadas, tinham uivos que pareciam gemidos humanos, movimentos irascíveis, mordiam o ar querendo morder os mosquitos. Ao longe, para as bandas de São Pantaleão, ouvia-se apregoar: “Arroz de Veneza! Mangas! Mocajubas!” Às esquinas, nas quitandas vazias, fermentava um cheiro acre de sabão da terra e aguardente. O quitandeiro, assentado sobre o balcão, cochilava a sua preguiça morrinhenta, acariciando o seu imenso e espalmado pé descalço. Da Praia de Santo Antônio enchiam toda a cidade os sons invariáveis e monótonos de uma buzina, anunciando que os pescadores chegavam do mar; para lá convergiam, apressadas e cheias de interesse, as peixeiras, quase todas negras, muito gordas, o tabuleiro na cabeça, rebolando os grossos quadris trêmulos e as tetas opulentas. "( CONTINUA)
Julio Ribeiro:
O doutor Lopes Matoso não foi precisamente o que se pode chamar um homem feliz.
Aos dezoito anos de sua vida, quando apenas tinha completado o seu curso de preparatórios, perdeu pai e mãe com poucos meses de intervalo.
Ficou-lhe como tutor um amigo da família, o coronel Barbosa, que o fez continuar com os estudos e formara-se em direito.
No dia seguinte ao da formatura, o honesto tutor passou-lhe a gerência da avultada fortuna que
lhe coubera, dizendo:
- Está rico, menino, está formado, tem um bonito futuro diante de si. Agora é tratar de casar, de ter filhos, de galgar posição. Se eu tivesse filha você já tinha noiva; não tenho, procure-a você mesmo.
Lopes Matoso não gastou muito tempo em procurar: casou-se logo com uma prima de quem sempre gostara e junto à qual viveu felicíssimo por espaço de dois anos.
Ao começar o terceiro, morreu a esposa, de parto, deixando-lhe uma filhinha.
Lopes Matoso vergou à força do golpe, mas, como homem forte que era, não se deixou abater de vez: reergueu-se e aceitou a nova ordem de coisas que lhe era imposta pela imparcialidade brutal da natureza.
Arranjou de modo seguro seus negócios, mudou-se para uma chácara que possuía peno da cidade, segregou-se dos amigos e passou a repartir o tempo entre o manusear de bons livros e o cuidar da filha.
Esta, graças às qualidades da ama que lhe foi dada, cresceu sadia e robusta, tomando-se desde logo a vida, a nota alegre do eremitério que se constituíra Lopes Matoso.
Visitas de amigos raras tinha ele, porque mesmo não as acoroçoava: convivência de fama não tinha nenhuma.
Leitura escrita gramática aritmética, álgebra, geometria, geografia, história, francês, espanhol, natação, equitação, ginástica, música , tudo isso Lopes Matoso exercitou a filha porque em tudo era perito: com ela leu os clássicos portugueses, os autores estrangeiros de melhor nota, e tudo quanto havia de mais seleto na literatura do tempo.
Aos quatorze anos Helena ou Lenita, como a chamavam, era uma rapariga desenvolvida, forte, de caráter formado e instrução acima do vulgar.
Lopes Matoso entendeu que era chegado o tempo de tomar a mudar de vida, e voltou para a cidade." (CONTINUA)
Adolfo Caminha:
A velha e gloriosa corveta — que pena! — já nem sequer lembrava o mesmo navio d’outrora, sugestivamente pitoresco, idealmente festivo, como um galera de lenda, branca e leve no mar alto, grimpando serena o corcovo das ondas!...
Estava outra, muito outra com o seu casco negro, com as suas velas encardidas de mofo, sem aquele esplêndido aspecto guerreiro que entusiasmava a gente nos bons tempos de “patescaria”. Vista ao longe, na infinita extensão azul, dir-se-ia, agora, a sombra fantástica de um barco aventureiro. Toda ela mudada, a velha carcaça flutuante, desde a brancura límpida e triunfal das velas até a primitiva pintura do bojo.
No entanto ela aí vinha — esquife agourento — singrando águas da pátria, quase lúgubre na sua marcha vagarosa; ela aí vinha, não já como uma enorme garça branca flechando a líquida planície, mas lenta, pesada, como se fora um grande morcego apocalíptico de asas abertas sobre o mar...
Havia pouco entrara na região das calmarias: o pano começava a bater frouxo, mole, inchando a cada solavanco, para recair depois, com uma pancada surda e igual, no mesmo abandono sonolento; a viagem tornava-se monótona; a larga superfície do oceano estendia-se muito polida e imóvel sob a irradiação meridional do sol, e a corveta deslizava apenas, tão de leve, tão de leve que mal se lhe percebia o movimento.
Nem sinal de vela na linha azul do horizonte, indício algum de criatura humana fora daquele estreito convés: água, somente água em derredor, como se o mundo houvesse desaparecido num dilúvio medonho..., e no alto, lá em cima, o silêncio infinito das esferas obumbradas pela chuva de ouro do dia.
Triste e nostálgica paisagem, onde as cores desmaiavam à força de luz e a voz humana perdia-se numa desolação imensa!
Marinheiros conversavam à proa, sentados uns no castelo, outros em pé, colhendo cabos ou estendendo roupa ao sol, tranqüilamente, esquecidos da faina. As chapas dos mastros, a culatra das peças, varais de escotilha, tudo quanto é aço e metal amarelo reluz fortemente, encandeando a vista.
De vez em quando há um grande rebuliço: a mastreação geme, como se fora desprender-se toda, o pano bate com força de encontro às vergas, chocam-se cabos com um ruidozinho seco, e ouve-se o cachoeirar da água no bojo da velha nau.
Agüenta! diz uma voz.
E volta o sossego e continua a pasmaceira, o tédio, a calmaria sem fim...
Já os primeiros sintomas de indolência refletiam-se no semblante da gente, convertendo-se em bocejos e espreguiçamentos de sesta, e ainda ficavam tão longe as montanhas da costa e os carinhos da família!..." (CONTINUA)
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