Ontem, terça-feira
fantasiada de domingo, fui ao supermercado para cumprir a função
diária abastecer ao lar e matar as lombrigas da fome. Coisa básica,
do dia-a-dia. Sendo cliente costumeiro, acaba-se por fazer um certo
tipo de amizade com outros clientes, assíduos como eu. São
"amizades de fila": a senhora que compra 6 fatias de queijo
e 8 de presunto, na fila dos frios. No açougue, um magrelo que
sempre pede frango em opções diferentes, dependendo da inclinação
do dia. E na padaria, um certo senhor que como todos os outros não
tenho a mínima ideia do nome. Negro, baixo, careca, lá pelos seus
65 anos, um netinho sentado dentro do carrinho -- esse sei o nome,
Leonardo, como meu filho mais velho -- e um vozeirão que se escuta a
cada canto do supermercado. Esse meu amigo de fila é a cara do
boa-praça. Sempre cheio de gentilezas e de perguntas que vão do
trivial "tudo bem?" até outras mais complicadas em serem
respondidas, como "será que essa chuva não vai parar não?".
Se tu tens pressa pode passar que aposentado não tem hora, catchup
no cachorro quente é mais importante para a criançada que a
salsicha, etc. Sacaram?
 
Ontem nos encontramos,
como sempre na fila do pão, meia dúzia de palavras triviais, cada
um para seu lado. Na fila do caixa -- péssimo lugar para fazer
amigos. Não recomendo -- meu colega do pão, sempre falando alto e
brincando, no caixa ao lado. À minha frente um jovem casal
acompanhados pela sogra de um deles, cochichavam piadas fantásticas,
sendo a mais legal algo como "Esse negro palhaço não cala a
boca?". Meu primeiro impulso foi decorar a boca do rapaz com
minha mão em punho. Depois resolvi encarar, esperando que se dessem
conta. O rapaz percebeu e passou a agir como "doutor no caixa",
a pior espécie, assinando o cartão de crédito, pegando telefone do
mercado para eventualidades, etc. Dois minutos depois foram embora,
as pessoas do bem à minha frente e meu colega da fila, com seu
netinho em uma mão -- "Será que pagou o guri a prestação?"
-- e a sacola de compras na outra.
 
Eu, idiota, covarde,
me sinto envergonhado de não ter agido de outra forma. Não sou do
tipo que vê o mundo passando, pegando carona eventualmente, mas
neste caso acabei agindo da pior maneira que existe: sem atitude
alguma.
 
***
 
À noite, começam a
brotar mineiros do solo do Atacama. Sessenta e nove dias isolados e o
que vejo saindo daquele buraco que invade as intimidades da Terra são
homens fortes, valorosos, que conseguiram manter o equilíbrio
mental. Florencio Avalos é o primeiro de muitos e saem de pé, pois
imagino que jamais um deles queira se deitar frente a uma
dificuldade. Muitos já falam dos louros políticos que o Presidente
chileno Sebastián Piñera possa colher. Um presidente que assumiu no
início do ano, já tendo que encontrar meios de reconstruir um país
devastado pelo terremoto de janeiro, merece louros. Independente do
que pensem os oportunistas e desafetos, ele está ali, no meio do
nada, representando o desejo de uma Nação em ter de volta pais,
filhos, irmãos. E dá-lhe "Chi-chi-chi Le-le-le Chile!"
Um patriotismo que não se restringe à Copa do Mundo nem ao Carnaval
nu.
 
Tenha por base nossos
desastres naturais recentes, como inundações, deslizamentos de
encosta e outras barbaridades e note que o seu presidente, no máximo,
sobrevoou a desgraça para ele alheia. Nosso povo é tão "regional"
e bairrista que o desamparo de meus conterrâneos paulistas vira
chacota ou disputa política em outros Estados. E em Angra ainda há
desabrigados...
 
***
 
Em um momento,
vergonha. Noutro, orgulho. Ser bicho humano é viver na contradição.
 
***
 
Essa misantropia que
tem aumentado em mim é carregada de motivos, mas existem momentos
únicos, como esses mineiros do Chile, que a dominam e me impedem de
procurar uma mina funda para que possa me enterrar e esquecer que
faço parte da maravilhosa raça humana e suas perversidades,
encontradas até em fila de supermercado.
 
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