9 de nov. de 2009

Deputado Fulano - Uma ficção



8:00





Fulano é Deputado Federal por um partido cuja sigla possui um "C" maiúsculo. "C" de comunismo. Vários partidos possuem esse "C" em sua formação, mas vários substituíram por um "S", um "T"...



Mas isso não importa. O que importa -- e Fulano sabe disso -- é que a ideologia demagógica é comum a todas elas. Como os grandes líderes no antigo regime na extinta URSS sabiam que, se religião é o ópio do povo, o povo pode acreditar em qualquer coisa ou ideia repetida de maneira exaustiva, dita e carregada de emoções enterais.


Hoje, dia que se comemora a queda do Muro de Berlim -- símbolo máximo da cisão entre dois mundos antagônicos e cruéis, cada um a sua maneira -- o Deputado Fulano vai subir à Tribuna da Câmara para discursar. Usará todo o tempo disponível para enaltecer o fato histórico, a união entre os povos e se der tempo, comentar o último jogo do Corinthians.



12:00



Em um restaurante escolhido a dedo por seus assessores, Deputado Fulano está almoçando com certa moça, também ocupante de cargo eletivo. Discutem sobre como está difícil safar-se do sempre presente "grampo" telefônico. Como a mídia os expõe de uma maneira cruel a seus eleitores, etc, etc, etc. Um lauto almoço, regado a vinho francês, que o nobre Deputado paga com prazer, já que a verba de gabinete é uma fonte inesgotável.





15:00



Depois de almoçar a colega, Deputado Fulano está em seu gabinete, dando os últimos retoques em sua bela pessoa. Um pouco de base para dar um pouco de cor a seu rosto, uma nova gravata Hermes, uma escovada no paletó. Não que ele necessite fazer qualquer movimento, pois ali estão todos os seus assessores: os que escrevem seu discurso, os que lhe penteiam, os que atendem aos telefones para informar que o nobre em questão encontra-se "em reunião".


16:00


Deputado Fulano está agora discursando a um Plenário quase vazio. Assim como ele, muitos tem "compromissos junto a suas bases" e não puderam comparecer. Mas ele está ali, rosto congestionado, voz embargada, gestos desmedidos. A câmera de tv da estatal que lhe oferece holofotes gratuitos chega mesmo a mostrar uma lágrima solitária que escorre por seu rosto e lhe borra ligeiramente a maquiagem. São ditas frases de efeito, como "um mundo para todos", "o Muro simbolizava a tragédia da II Guerra Mundial", "Não permitamos que isso aconteça novamente, jamais!".



Ao descer da Tribuna, sob aplausos daqueles poucos que ali se encontram, sorri. Está satisfeito com a reação e com os tapinhas nas costas.



Eu, sentado ali no canto da galeria, anoto mentalmente os erros históricos do Deputado comunista. O Muro havia sido erguido pela ex-URSS, a referência máxima para os "socialistas" terceiro-mundistas. O Regime havia assassinado milhares de pessoas que ousaram tentar passar por suas barreiras de concreto e iniquidade. O Muro separava uma Europa moderna e capitalista de outra bem diferente, onde o governo achava-se no direito de intervir na vida particular de todos, sob a alegação de querer o bem maior. Para mim, a queda do muro não fez com que o capitalismo atingisse ao leste europeu, mas sim, liberou comunistas como o nobre ali embaixo para andar livremente pelo mundo...



Sigo os passos do nobre deputado até a porta, onde uma carro importado o espera, preto e reluzente. O motorista lhe abre a porta, ele entra e somem pelo cerrado, em direção ao bairro mais caro da Capital, em claro excesso de velocidade.



18:00



Alzira abre a porta da mansão para seu patrão. O Deputado Fulano entra sem mesmo notar o olhar de admiração de sua empregada. Ela está ali há anos, mas não se cansa da estampa de seu patrão.



Enquanto o nobre Deputado aproveita um demorado banho, em um ritual de sais e cremes, Alzira serve a mesa para o jantar. Hoje ela vai aproveitar que seu ídolo está de bom humor e vai-lhe pedir férias, algo que nem sabe realmente como funciona. Trabalhando de segunda a segunda, sem horário fixo, nunca teve tempo nem vontade de conhecer seus direitos. A única coisa que ela realmente sabe é que o presidente garantiu que a vida dela melhoraria. Isso aconteceu ali mesmo, naquela sala de jantar decorada com certo exagero, quando houve uma reunião para acertar coisas que só eles entendem. Por ela, o presidente seria Fulano, mas se ele achava melhor que ela votasse em outro, oras olas, ela votaria. Afinal, ele é bem mais entendido que ela nesses assuntos. O presidente lhe perguntou sobre o que ela queria da vida, na hora em que ela entrou para servir o café, logo após o jantar. Ela respondeu que queria vaga na escola para a filha, que havia ficado lá na sua terra natal. O presidente anotou e prometeu. Se não cumpriu, com certeza não é culpa dele, mas sim de um tal de acordo que ela nunca sabe o que significa.



Enquanto estava distraída com seus pensamentos, entra Fulano, trajado em um robe atoalhado vermelho, presente daquela deputada do almoço. Senta, e começa a comer, sem dizer palavra. Quando perguntado sobre as férias ele grita, esbraveja e pergunta se Alzira acha que dinheiro dá em árvore. Mal-agradecida por todos os salários-mínimos que recebera até hoje, deveria ter um pouco de consideração e perceber que estamos em crise.



Alzira retira-se para a cozinha, esperando que o patrão termine o jantar. Obtusa como é, acaba sentindo-se culpada e teme que seu patrão acabe tendo alguma indigestão, por sua causa. Nunca mais ela lhe perguntará sobre férias.



22:00



Na Tv a cabo, Fulano se vê. Lindo e imponente no alto da tribuna. Aquele Armani tem um corte perfeito e como a cor do tecido destacou seu corpo malhado. Nem percebe-se a cinta que lhe comprime o abdomen que insiste em crescer cada dia mais. Pena que havia tão pouca gente.



Acende um Cohiba e entorna mais uma dose de Johnny Walker Green. "Missão cumprida".



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